27 de abr. de 2008

possibilidades.

eu não seria esta impossibilidade de ser,
estar é tão somente acompanhar a olhos vistos a cegura da vida - a cegura que guia para o nada.
eu estava cego mas houve uma luz possível, e eu fui - não mais estava;
bem ali, impossivelmente eu era. não o era de um momento, mas um momento de eras.

somente possibilidades, escuras, opacas, curvilíneas:
desenhei retas de vidas e pontos cruzados formaram um momento.
não saberia ser ou estar, ficar, permanecer: o pior que é difícil ser algo no momento certo, com as pessoas certas, com a visão certa:
com as retas em perfeição cruzando-se em orgasmos múltiplos até cegar;
- o pior (eu só seria) se fosse calcular cego os ângulos destas retas, impossibilidades de quem não sabe e nem quer arriscar.

esforço inútil, impossível.

tanto que eu não seria, não seria este ser cego-burocrata: eu acho que só seria.

25 de abr. de 2008

escutei e indico: Maré (Adriana Calcanhotto)


Confesso que não sou fã confesso da Adriana... só gostava, em particular, de algumas músicas do cd Maritimo... mas quão foi minha surpresa ao ouvir Maré (2008), novo disco da cantora após seis anos sem pisar em um estúdio (deixando de fora o álbum infantil que fizera neste intervalo). As letras estão lindas, de uma sensibilidade e crueza dignas da dinâmica e beleza do mar...

Em vez de puxar Adriana Calcanhotto para correntezas mais agitadas, Maré situa a artista em águas plácidas que, de alguma forma, já impulsionavam o curso de sua discografia. O violão bossa-novista que introduz e pontua a faixa-título, parceria da compositora com Moreno Veloso, sinaliza o tom suave do álbum - imerso no alto padrão estético que molda a obra de Calcanhotto e que não foi transmutado pelo produtor Arto Lindsay. O piloto parece ter tido acertada discrição na condução do barco, que alterna trilhas novas e antigas. Destas, Mulher Sem Razão tem o mérito de fazer emergir uma jóia do mar de Cazuza (1958 - 1990), Dé Palmeira e Bebel Gilberto. Eleita para puxar Maré nas rádios, a música é da mesma leva de Preciso Dizer que te Amo e Mais Feliz, gravada por Calcanhotto em 1998 em seu disco, Maritmo, que mais dialoga conceitualmente com Maré, que, musicalmente, remete mais ao cool Cantada (2002). A recorrência ao cancioneiro de Dorival Caymmi é outro ponto convergente entre Maré e Maritmo, que formam as duas primeiras partes de uma trilogia idealizada por Calcanhotto durante a gestação deste seu oitavo álbum - encerrado com Sargaço Mar (1985), um fim de som adornado pelo violão doce de Gilberto Gil. A escolha desta música, uma das mais difíceis de Caymmi, indica a intenção da artista de navegar por trilhas menos óbvias. Mesmo quando canta balada radiofônica como Seu Pensamento, de letra cheia de questionamentos românticos. A música é bela parceria de Calcanhotto com o baixista Dé Palmeira.

A corrente lúdica do projeto infantil da artista, Adriana Partimpim (2004), deságua em duas grandes faixas de Maré. Um Dia Desses é surpreendente flerte com a canção ruralista do interior em que Moreno Veloso faz a segunda voz. Kassin musicou os versos de Torquato Neto (1944 - 1972) com singeleza. É o tema de maior apelo popular do álbum. Porto Alegre (Nos Braços de Calipso) se situa nestas mesmas águas lúdicas das quais emergem o canto da sereia Marisa Monte, que faz lindos vocalises neste tema latino de Péricles Cavalcanti que faz trocadilho no título com a cidade natal da cantora gaúcha. O duo com Marisa é mitológico.

Em corrente mais densa, a artista mergulha fundo nos versos de poema de Augusto de Campos, Sem Saída, musicado por Cid Campos. Pena que, ao musicar os versos revoltos de Waly Salomão (1944 - 2003) para Teu Nome Mais Secreto, a compositora não tenha mergulhado nas profundezas atingidas em Sem Saída. A melodia suave de Calcanhotto se opõe aos versos urgentes de Waly. Maré, aliás, é disco tragado por ondas poéticas de escritores como Ferreira Gullar, Antonio Cicero e Arnaldo Antunes - de quem Calcanhotto musicou com inspiração os versos de Para Lá. Cicero está representado por Três, recente parceria com a mana Marina Lima. A leitura de Calcanhotto é leve - na contramão do peso inadequado imposto por Ana Carolina à sua simultânea gravação da música - mas, das três intérpretes, Marina é a que parece, por motivos óbvios, ter compreendido mais os caminhos sinuosos de Três. Ferreira Gullar teve menos sorte: a regravação de Onde Andarás é a única faixa realmente dispensável de Maré. Novamente, Calcanhotto não mergulhou tão fundo e não expressa na gravação a extrema melancolia e desesperança dos versos de Gullar, musicados por Caetano Veloso para seu disco tropicalista de 1967. Impossível não pensar no mergulho mais profundo feito por Maria Bethânia no álbum Maria (1988). No todo, é justo reconhecer que a maré de Adriana Calcanhotto está cheia. De referências poéticas, de diálogo com as artes plásticas - como exemplifica a bela capa de Gilda Midani - e de uma modernidade que a mantém como uma das artistas mais inteligentes e refinadas de sua época. Maré não altera esse curso.






23 de abr. de 2008

assisti e indico: O Silêncio.



Duas irmãs estão no exterior a caminho de casa. Elas talvez mantenham uma relação incestuosa lésbica. Uma delas é tradutora e se embebeda diariamente para tentar suportar as dores de uma doença maligna que a destrói por dentro. A outra irmã, mãe de um garoto, aproveita as tardes quentes do verão russo para visitar bordéis e satisfazer seus desejos neuróticos de dominação e submissão.

Para falar de O Silêncio, de Ingmar Bergman, derradeira parte de sua “Trilogia do Silêncio”, é bom voltar ao ano de 1964, quando os estudantes atearam fogo em Paris. Só durou duas semanas o qüiproquó, mas os reflexos, como todos sabemos, foram muitos e duradouros. Já teria valido a pena só por ter dado assunto a tantos ótimos filmes. Talvez outro ótimo reflexo foi ter impedido a premiação do Festival de Cannes daquele ano – é brincadeira.

O ano 1964 entraria para a história de qualquer forma, pois foi a o ano de Bande à Part (Jean-Luc Godard), Gertrud (Carl Dreyer), Marnie, Confissões de uma Ladra (Alfred Hitchcock), Uma Mulher Casada (Jean-Luc Godard), O Esporte Favorito dos Homens (Howard Hawks), Deserto Vermelho (Michelangelo Antonioni), A Terra do Sonho Distante (Elia Kazan), O Silêncio (olha ele aí!) e Para Não Falar de Todas Essas Mulheres (ambos de Ingmar Bergman), além de O Criado (Joseph Losey, para muitos, a sua obra-prima). Essa é, pela ordem, a lista dos dez melhores filmes do ano feita pela revista francesa Cahiers du Cinéma, então a maior referência cinematográfica mundial.

Mas havia muito mais: Os Guarda-Chuvas do Amor (Jacques Demy), Um só Pecado (François Truffaut), Caravana de Bravos (John Ford), Dr. Fantástico (Stanley Kubrick), Minha Bela Dama (George Cukor, que venceu o Oscar), Diário de uma Camareira (Luis Buñuel na França), o magnífico A Mulher de Areia (Hiroshi Teshigahara), Crepúsculo de uma Raça (John Ford) e até Os Reis do Iê-Iê-Iê (Richard Lester). E olha que só usei a Cahiers de fonte, tem muito mais.

Pois O Silêncio foi eleito o oitavo melhor filme do ano com concorrência pesada, inclusive o diretor, pois o próprio Bergman entrou no duro páreo com outro de seus filmes, Para Não Falar de Todas Essas Mulheres. O cineasta sueco estava no auge do prestígio, já havia ganhado Cannes e o Oscar (esse, duas vezes), gozava de fama internacional (os cinéfilos brasileiros devoravam seus filmes com fervor quase religioso, um paradoxo) e garantido seu nome na história.

Bergman desenvolveria tema semelhante, do embate entre mulheres que psicologicamente se imiscuem, com insuperável maestria no seu filme seguinte, Persona (66), ou mesmo numa de suas obras-primas, Gritos e Sussuros (73). Bergman repetia os temas, mas são as variações deles que realmente importam. Em O Silêncio, é impossível saber qual das irmãs é projeção da outra, qual seria a verdadeira ou quem é o ego liberado da primeira, se a reprimida intelectual ou a liberada fútil. No duelo verbal, confrontadas, ambas se aniquilam. Cada uma quer ser uma parte da outra, têm inveja, mas não suportam as limitações.

Em resumo, falar de O Silêncio é, portanto, falar de um tempo mítico em que o cinema não era uma diversão, mas a legítima representação artística do que pensava, ansiava e esperava toda uma geração. O ideal marxista de 64 provou-se inviável e foi suplantado pela democracia capitalista. Os filmes, porém, resistiram ao tempo. O Silêncio tem os excessos da época e não supera as duas primeiras partes da “Trilogia do Silêncio”: Através de um Espelho e Luz de Inverno. No entanto, não há espaço hoje para esse tipo de filme; não são mais feitos. Eles são, como o ideário daquela época, apenas utopia.


fonte: (cineplayers.com)



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Muito, muito foda. alguns "bergmaníacos" acham o filme raso demais, mas faz tempo que não vejo nada tão perturbador no cinema. Assisti e indico.






13 de abr. de 2008

.pequena crônica estética.

E foi assim, de uma só vez, que a Margarida passou a comer menos, e menos (e menos) – até morrer e ser enterrada com pompas, sem uma causa certa de sua precoce morte. Explicações lógicas e místicas à parte, fora transferida anos depois – em esqueleto – para um ossuário ante a insistente consternação dos parentes ditos próximos.

Os mistérios da vida, pronunciados como inexoráveis, parecem ser tão simples quando um fato desmistifica o outro e assim sucessivamente: as ações se encandeiam. A pobre Margarida, que de pobre não tinha nada, queria era ficar com o corpitcho de esqueleto que agora putrefata ostentava. E deixou de comer, e deixou de comer, e morreu desejosa por uma suculenta lasanha.

E, dito isto, assim se foi. Objetivo consumado, parentes perdidos no meio da vida sem entender os mistérios que a circundam, tudo prosseguindo etc e tal.

E assim foi que a vida continuou, com os fartos almoços de domingo em família e a Margarida mofando no salitre dos vermes, arrependida por ter morrido de fome e não de plástica – teria dado bem menos trabalho.