25 de abr. de 2008

escutei e indico: Maré (Adriana Calcanhotto)


Confesso que não sou fã confesso da Adriana... só gostava, em particular, de algumas músicas do cd Maritimo... mas quão foi minha surpresa ao ouvir Maré (2008), novo disco da cantora após seis anos sem pisar em um estúdio (deixando de fora o álbum infantil que fizera neste intervalo). As letras estão lindas, de uma sensibilidade e crueza dignas da dinâmica e beleza do mar...

Em vez de puxar Adriana Calcanhotto para correntezas mais agitadas, Maré situa a artista em águas plácidas que, de alguma forma, já impulsionavam o curso de sua discografia. O violão bossa-novista que introduz e pontua a faixa-título, parceria da compositora com Moreno Veloso, sinaliza o tom suave do álbum - imerso no alto padrão estético que molda a obra de Calcanhotto e que não foi transmutado pelo produtor Arto Lindsay. O piloto parece ter tido acertada discrição na condução do barco, que alterna trilhas novas e antigas. Destas, Mulher Sem Razão tem o mérito de fazer emergir uma jóia do mar de Cazuza (1958 - 1990), Dé Palmeira e Bebel Gilberto. Eleita para puxar Maré nas rádios, a música é da mesma leva de Preciso Dizer que te Amo e Mais Feliz, gravada por Calcanhotto em 1998 em seu disco, Maritmo, que mais dialoga conceitualmente com Maré, que, musicalmente, remete mais ao cool Cantada (2002). A recorrência ao cancioneiro de Dorival Caymmi é outro ponto convergente entre Maré e Maritmo, que formam as duas primeiras partes de uma trilogia idealizada por Calcanhotto durante a gestação deste seu oitavo álbum - encerrado com Sargaço Mar (1985), um fim de som adornado pelo violão doce de Gilberto Gil. A escolha desta música, uma das mais difíceis de Caymmi, indica a intenção da artista de navegar por trilhas menos óbvias. Mesmo quando canta balada radiofônica como Seu Pensamento, de letra cheia de questionamentos românticos. A música é bela parceria de Calcanhotto com o baixista Dé Palmeira.

A corrente lúdica do projeto infantil da artista, Adriana Partimpim (2004), deságua em duas grandes faixas de Maré. Um Dia Desses é surpreendente flerte com a canção ruralista do interior em que Moreno Veloso faz a segunda voz. Kassin musicou os versos de Torquato Neto (1944 - 1972) com singeleza. É o tema de maior apelo popular do álbum. Porto Alegre (Nos Braços de Calipso) se situa nestas mesmas águas lúdicas das quais emergem o canto da sereia Marisa Monte, que faz lindos vocalises neste tema latino de Péricles Cavalcanti que faz trocadilho no título com a cidade natal da cantora gaúcha. O duo com Marisa é mitológico.

Em corrente mais densa, a artista mergulha fundo nos versos de poema de Augusto de Campos, Sem Saída, musicado por Cid Campos. Pena que, ao musicar os versos revoltos de Waly Salomão (1944 - 2003) para Teu Nome Mais Secreto, a compositora não tenha mergulhado nas profundezas atingidas em Sem Saída. A melodia suave de Calcanhotto se opõe aos versos urgentes de Waly. Maré, aliás, é disco tragado por ondas poéticas de escritores como Ferreira Gullar, Antonio Cicero e Arnaldo Antunes - de quem Calcanhotto musicou com inspiração os versos de Para Lá. Cicero está representado por Três, recente parceria com a mana Marina Lima. A leitura de Calcanhotto é leve - na contramão do peso inadequado imposto por Ana Carolina à sua simultânea gravação da música - mas, das três intérpretes, Marina é a que parece, por motivos óbvios, ter compreendido mais os caminhos sinuosos de Três. Ferreira Gullar teve menos sorte: a regravação de Onde Andarás é a única faixa realmente dispensável de Maré. Novamente, Calcanhotto não mergulhou tão fundo e não expressa na gravação a extrema melancolia e desesperança dos versos de Gullar, musicados por Caetano Veloso para seu disco tropicalista de 1967. Impossível não pensar no mergulho mais profundo feito por Maria Bethânia no álbum Maria (1988). No todo, é justo reconhecer que a maré de Adriana Calcanhotto está cheia. De referências poéticas, de diálogo com as artes plásticas - como exemplifica a bela capa de Gilda Midani - e de uma modernidade que a mantém como uma das artistas mais inteligentes e refinadas de sua época. Maré não altera esse curso.